Lei Maria da Penha: há dez anos a violência doméstica deixou de ser assunto tratado em casa

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maria-da-penha“Eu não denunciei talvez por medo. Queria que tudo fosse resolvido sem precisar chamar a Polícia”. Este trecho é parte do depoimento de uma das mulheres.

O ditado popular “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” deixou de valer em solo brasileiro há exatos dez anos. No mês de agosto de 2006, foi sancionada a Lei 11.340/2006, que cria mecanismos para inibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. É a Lei Maria da Penha, que garante a devida intervenção das forças de segurança pública, bem como de outros órgãos, em conflitos existentes no seio familiar. O próximo domingo (7) é a data de aniversário da Lei que leva o nome de Maria, mas representa milhares de Anas, Eloisas, Joanas e tantas outras mulheres.

A Lei 11.340/2006 abrange os casos de violência doméstica. Para atender as vítimas de ocorrências dessa natureza, as moradoras do Ceará contam com Delegacias Especializadas de Defesa da Mulher (DDMs). “Essas mulheres chegam à delegacia para narrar a situação de violência doméstica sofrida. Elas querem uma solução e a punição do infrator”, explica a delegada Érika Moura, titular adjunta da DDM de Fortaleza. De acordo com a delegada, o crime mais registrado na delegacia é o de ameaça. “Elas não esperam mais que a agressão chegue à violência física, pois sabem que tem uma Lei que as protege”.

A Delegacia da Mulher trabalha em parceria com os demais órgãos que compõem a rede de atendimento de proteção à mulher, que engloba os vários órgãos do Sistema de Segurança Pública, Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Centro de Referência da Mulher, com atendimento assistencial, psicológico e jurídico, entre outros. Portanto, a assistência ofertada às vítimas destes casos não se limita ao prédio de uma unidade policial. Se a violência é cometida em casa, a segurança pública também chega lá.

Moradoras de sete bairros da Capital cearense – nas Unidades Integradas de Segurança 1 e 2 (Unisegs 1 e 2) – já contam o atendimento disposto pelos policiais militares do Grupo de Apoio às Vítimas de Violência (GAVV), por meio do Ronda Maria da Penha. “Nós tornamos real a pretensão judicial de se dá um tratamento protetivo às mulheres vítimas de violência”, explica o capitão José Messias Mendes Freitas, comandante do policiamento militar da Uniseg 1 – bairros Vicente Pinzon, Cais do Porto e Mucuripe. Os bairros contemplados pela Uniseg 2 são: Aldeota, Varjota, Meireles e Praia de Iracema.

Os policiais que atuam no GAVV são focados em realizar ações solidárias, dando apoio e orientações a quem necessitar. O trabalho consiste no atendimento feito na casa da vítima, com os fundamentos do policiamento comunitário. “É uma atividade aproximada. Eu chamo de antecipação de emergência”, detalha o capitão Mendes.

As visitas não têm dia nem hora para acabar. Levam, em média, uma hora de duração, entre conversas, aconselhamentos e um cafezinho. “Nós conversamos sobre o relacionamento do casal e discutimos os motivos que fizeram a relação chegar ao ponto da violência”, esclarece a soldado Denise Elen de Oliveira Sousa, que faz parte do GAVV da Uniseg 1. Ela ainda conta que a equipe orienta as mulheres sobre como a Lei as favorece. Se o casal reatar o relacionamento, a orientação dada é fazer a retirada da medida protetiva outrora solicitada. “Mas o acompanhamento não para, continua até um certo momento”, continua Elen, dando o exemplo de um lar que passou a ser cenário de violência verbal entre os cônjugues e foi acompanhado pelo GAVV. Mais tarde, o casal compreendeu a necessidade do respeito no ambiente familiar e o romance foi reatado. “Esta mulher estava sendo acompanhada por nós há quatro ou cinco meses. Os dois têm uma filha. Sempre que a gente passa por lá, ela agradece pelos esclarecimentos e conversas. Eles voltaram”, comemora a policial.

Com cinco anos na corporação, Elen declara que o trabalho que ela desenvolve dentro da equipe do GAVV mudou sua forma de ver a profissão. “Já fomos chamados de Ronda da família. As pessoas são gratas, pois nosso objetivo central é ajudar e nosso trabalho é mais preventivo. Antes de acontecer, a gente já está lá”, conclui.

E não para por aí. O agressor também recebe a visita dos policiais e é orientado sobre os preceitos da Lei Maria da Penha, bem como o risco de ser preso caso dê continuidade às agressões. “Saímos da lógica que atende a emergência. Se for preciso fazer mais de uma visita, falar com o companheiro da vítima ou acionar o poder judiciário, nós o fazemos”, enfatiza o capitão Messias. Para o cabo Ronald Cavalcante Soares, comandante do GAAV da Uniseg 1, a maioria dos agressores volta atrás em seu comportamento violento ao saber que a Polícia está acompanhando de perto sua ex ou até mesmo atual companheira. “Eles recuam quando sabem que tem a presença da Polícia”, avalia o cabo.

Os policiais que atuam no GAVV são capacitados em um treinamento específico, com instruções sobre mediação e policiamento comunitário. Trata-se de uma formação continuada, com palestras sobre violência doméstica, curso de mediação, de intervenção e demais capacitações no segmento humanitário. “Este trabalho traz resultados que se refletem no dia a dia do policial nas ruas, ele se sente mais útil por ver os resultados práticos de seu trabalho e isso o faz se sentir, de fato, um agente de transformação”, comemora o capitão Messias, explicando ainda que o perfil desse agente de segurança é de característica mais cuidadosa. “Tem que ser um profissional atencioso, de mediação de conflitos”.

As Marias de hoje

“Eu não denunciei talvez por medo. Queria que tudo fosse resolvido sem precisar chamar a Polícia”. Este trecho é parte do depoimento de uma das mulheres assistidas pela PM. Moradora do bairro Praia do Futuro, ela preferiu não se identificar, mas relata os momentos de dor que vivenciou ao lado do marido e como sua percepção sobre denúncia mudou depois que conheceu a equipe do GAVV. Ela tem 46 anos e trabalha como comerciante, com o dia a dia bem agitado. “Ele me acordava com uma faca no pescoço. A relação, de 27 anos, ficou muito desgastada. Fui morar na casa do meu pai”. Mas a violência não parou por aí. O homem foi ao imóvel do sogro e quebrou o veículo da vítima. O motivo? Ele não aceitou o fim do relacionamento. “Eu estou me separando tem oito meses”. E as ameaças continuaram: “Se você não voltar pra mim, vou lhe matar”.

Neste caso, quem acionou a Polícia foi o pai da vítima. A partir daí, a mulher entrou na rota de visitas dos PMs do GAVV. “Foi uma situação nova. O policial me deixou bastante à vontade. Mudei minha ideia sobre denúncia e solicitei a medida protetiva. Os policiais também conversaram com ele”. Agora, o próximo passo é vender a casa do casal e dividir o valor adquirido. Eles têm dois filhos de 20 e 26 anos.

Já outra vítima faz questão de dizer quem ela é e de deixar sua mensagem de esperança: “Faço questão de falar porque quantas mulheres estão sofrendo agressões e não denunciam”, indaga Eloisa Ferreira Cabral Barbosa, 34, mãe de cinco filhos com idades entre quatro e 16 anos.

Ela é dona de casa e moradora do Serviluz. “Nasci e cresci nesse bairro”. Eloisa já começa a conversa dizendo que a presença dos policiais é constante em sua casa. “Pra falar a verdade, sempre que eu preciso, eles (policiais) estão dispostos a ajudar. Estava vivendo com um rapaz e tive um filho com ele. A nossa convivência estava ficando desgastada, com agressão física e verbal”. O casal optou pela separação, após um relacionamento que durou cinco anos, mas isso não mudou a rotina de violência. “Ele continuou do mesmo jeito, sempre ameaçava a mim, meus filhos, meus pais e quem se aproximava de mim. Eu não aguentava mais”, desabafa. O marido de Eloisa se mudou para outra casa, em frente à sua.

“Fui atrás dos direitos sobre pensão alimentícia. Quando mostrei o papel, ele ficou com raiva e jogou uma chave de fenda em mim. Fui à delegacia”. A partir da denúncia, Eloísa também entrou no rol de visitas atendidas pelo GAVV. “Recebi orientações de que eu procurasse evitar contato, que eu procurasse não me aproximar muito dele. Sinceramente, se eu soubesse como seria hoje, eu já tinha chamado (a Polícia) há muito tempo. Depois que eles (militares) passaram a freqüentar minha casa, melhorou muito. Ele (companheiro) já deixou de invadir. As agressões físicas também pararam. Me tornei amiga deles (policiais) e quero que continuem visitando minha casa”, declara Eloisa.

As agressões do marido seguiram o comportamento de “ciúme doentio” descrito pela mulher. “As agressões começaram aos poucos. Ele é uma pessoa responsável, mas tinha ciúme doentio. Saí de vários empregos por causa dele. Me perseguia dentro do ônibus. O ciúme dele foi me aprisionando. Moro em cima da casa dos meus pais e não podia sair de casa e nem os meus filhos, do outro casamento, podiam ter contato comigo. Se o menino entrasse no meu quarto, ele já expulsava. Os policiais também fizeram uma visita a ele”. Eloisa ainda conta que a violência dentro de casa prejudicou mais ainda as crianças. Segundo ela, seus filhos passaram a ter um comportamento agressivo, sem confiar nas pessoas.

Ela ainda comenta algo que também é descrito no livro “Sobrevivi… Posso contar”, que narra a trajetória de violência doméstica vivenciada pela precursora da Lei que leva seu nome: Maria da Penha. “A gente acha que a pessoa nunca vai fazer nada porque a pessoa ainda gosta da gente”, declara Eloisa, semelhante ao que Maria da Penha conta em sua obra, que uma das características do agressor é pedir desculpas e dizer que vai melhorar.

Agora, Eloisa tem um novo desafio: “Minha mãe já decretou pra não arrumar mais ninguém”. Em tom de descontração, ela encerra a conversa ao dizer que seu desafio agora é conhecer alguém que, de fato, a ame.

Maria da Penha – milhares de mulheres em uma

A Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha foi sancionada após a cearense Maria da Penha Maia Fernandes, natural de Fortaleza, ser vítima de uma tentativa de homicídio cometida pelo próprio marido, na noite do dia 28 de maio de 1983. “Acordei de repente com um forte estampido dentro do quarto. Abri os olhos. Não vi ninguém. Tentei mexer-me, mas não consegui. Imediatamente fechei os olhos e um só pensamento me ocorreu: “Meu Deus, o Marco me matou com um tiro”. (FERNANDES, MARIA. p. 39). Maria da Penha sobreviveu. Como diz o título de sua obra, ela nos conta, até hoje, os sofrimentos que viveu ao lado de seu agressor – o próprio marido. Mas também fala sobre a empreitada para ter seus direitos como mulher assistidos e os caminhos percorridos para a sanção da Lei que carrega seu nome.

O artigo 1º da Lei Maria da Penha diz que esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. As formas de violência doméstica e familiar contra a mulher são classificadas, entre outras, no artigo 7º da Lei como: física, que ofenda a integridade ou saúde corporal; psicológica, que cause dano emocional; sexual, que constranja a presenciar, manter ou participar de ato sexual não desejado; patrimonial, que configure qualquer destruição ou retenção de objetos pessoais, da casa ou do trabalho ; e moral, que configure calúnia, difamação ou injúria.

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