O historiador João Eudes conviveu com Rachel de Queiroz por mais de 40 anos

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Joao_eudes_rede_Dn“Toda aquela simplicidade ela colocou nos escritos. Aprendi que a escrita é a impressão digital da alma”.

O historiador João Eudes conviveu com Rachel de Queiroz por mais de 40 anos. Para comemorar o centenário da amiga ilustre, o escritor abriu o baú das lem- branças. Em Quixadá, ele entrelaça histórias que vão da construção do açude do Cedro à perma- nência da escrita feminina na cidade

João Eudes Cavalcante Costa
Historiador

Como o senhor conheceu Rachel de Queiroz?

Eu era ainda muito jovem, mas já trabalhava no Banco do Brasil e colaborava com jornais da época. Foi no dia 21 de maio de 1960, lembro como se fosse hoje. Recebi um telegrama com a incumbência de ir à Fazenda Não me Deixes, saber mais a respeito do objeto não identificado, que muitos chamam de disco voador, e que tinha aparecido por lá. Ensaiei tanta coisa para dizer, preparei formalidades para encontrar aquela escritora tão grande, tão famosa. Mas foi tudo diferente.

O que o deixava mais nervoso – o assunto ou a entrevistada?

Olhe, eu tremia e suava de medo. Não a conhecia pessoalmente, ela já era “a” Rachel de Queiroz! Mas, quando cheguei lá, encontrei uma mulher de chinelos, sentada numa rede, cercada de matutos, conversando com moradores. Aquela cena desarmou o palco inteiro que eu tinha feito para me apresentar. E ela foi logo avisando: “não vá dizer para seu jornal que estamos afirmando que vimos disco voador. Estou dizendo que apareceu por aqui um objeto não identificado!”. E eu suando e tremendo…

Até Rachel de Queiroz teve experiência com os extraterrestres de Quixadá?

Tenho a matéria até hoje para comprovar. Eles contaram que estavam dentro de casa, quando perceberam um clarão muito forte no terreiro da Fazenda e pensaram que era carro chegando. Mas, quando foram lá fora, viram que a luz vinha de cima, que era multicor, e que saía de qualquer coisa em formato arredondado, clareando todo o chão. A “coisa” se aproximou um pouco mais e saído em velocidade imensa, desaparecendo no meio do nada.

A amizade nasceu aí?

Sim, ficamos próximos, sempre conversávamos, muito também porque eu era chegado a Cego Aderaldo, e ela era louca por ele. Quando chegava a Quixadá, mandava avisar que estava na terra, e íamos visitá-la. Uma vez ela me disse: “Eudes, para mim, você tem como amigo um dos três famosos do século: Lampião, Padre Cícero e Cego Aderaldo”. Falávamos de Sertão, de seca, de terra molhada, ela gostava muito do meio rural, de andar a cavalo.

Também foi ela que, já no final, me incentivou a fazer meu primeiro romance: “Escravo da Terra Seca”. Tínhamos combinado de ela escrever o prefácio, mas, infelizmente, não houve tempo. Ela adoeceu e não deu mais. Mas o livro foi publicado e devo isso a ela. Rachel de Queiroz foi um exemplo para nós. Nos dava a honra de dizer que era quixadaense, dizia que foi parida em Fortaleza, mas gerada em Quixadá.

Conhecendo-a tão de perto, o senhor afirmaria que a vida dela influenciou na criação de seus personagens femininos?

Eu conhecia Rachel pela literatura, romances, crônicas, mas o seu lado mais gostoso era mesmo o humano. Toda aquela simplicidade de vida ela colocou no escritos. Com ela, aprendi que a escrita é a impressão digital da alma. O segundo casamento de Rachel, em 1940, com o médico goiano, Oyama de Macedo, que faleceu em 1982, foi muito tranquilo. Eles passavam longos períodos aqui na fazenda, ele se adaptou muito bem ao Nordeste.

Chegava aqui, colocava chapéu de palha na cabeça e ganhava o meio do mato com os trabalhadores. Mas, antes disso, ela casou-se com um rapaz que era do Banco do Brasil e teve uma filha, a Clotilde, nome da mãe dela. Só que essa filha morreu com 18 meses, de septicemia (infecção por bactérias). Ela chateou-se muito com o marido, ficou revoltada, achava que a morte poderia ter sido evitada… E se separaram logo depois. Seus personagens, principalmente os femininos, são cheios de dor, força e sofrimento. Ela pôs tudo no que escreveu. Acredito que, por trás de todo romance de ficção, sempre há uma base de realidade.

E a amargura da seca…

Quando ela publicou “O Quinze”, em 1930, tinha apenas 20 anos de idade. Na seca de 1915, ela tinha apenas cinco anos. Eu sempre digo que ela recebeu esse livro de graça, que ganhou aqueles personagens, porque ela viu tudo, embora criança. E foi feio mesmo. Uma tia minha contava que, na seca de 1877, as pessoas tiravam o couro de tamboretes e cadeiras para comer. E gostava de relembrar a célebre frase de Dom Pedro, quando ele disse: “enquanto houver um brilhante na minha coroa, nenhum nordestino morrerá de fome”. E ele tomou providências mesmo.

Mandando construir o açude do Cedro?

Exato. O Imperador mandou para cá duas comissões: uma para a Capital e outra para o interior. Nossa estrada de ferro, a primitiva, chamava-se Estrada de Ferro de Baturité, porque tinha sido projetada para vir somente até Baturité. A comissão foi favorável que se estendesse a linha até o sul do Estado, para dar emprego ao pessoal. Depois, eles deram um diagnóstico lógico: o problema maior era a falta de água, e a solução era construir açudes. O sujeito com um pedaço de rapadura e dois copos d´água, passa o dia. Mas sem a água não vai!

A família de Rachel estava envolvida nessas questões?

No tempo do Império, veio a comissão buscar o melhor local para a construção do primeiro açude do Ceará. A Maçonaria pesou muito para a construção do Cedro aqui, em Quixadá. O José Jucá de Queiroz Lima, tio da Rachel, disse a João Brígido, deputado da província, e, como ele, maçom: “olha, o papai disse que lá em Quixadá tem um local muito bonito para fazer o açude, é um boqueirão”. O avô da Rachel foi um sujeito danado.

Morando aqui, formou todos os filhos, mandando para o Rio e Salvador. Daniel de Queiroz, o pai dela, era juiz; o outro tio, Esperidião, era médico e biólogo, foi ele quem descobriu que o morcego é o transmissor da raiva. E João Batista de Queiroz, médico, foi prefeito em Quixadá e, em 1910, encontrou uma forma de fazer uma conserva de carne enlatada que foi um sucesso.

O senhor tem outras lembranças especiais que guarda das conversas com dona Rachel?

Certa vez, ela me contou como se originou o nome da Fazenda Não me Deixes. Disse que, quando estudava em Fortaleza, vinha sempre de férias para cá. Certa feita, o pai separou um animal muito grande e muito manso, para ela andar pelas fazendas, ele tinha muitas terras por aqui. E disse: “minha filha, essa terra aqui será sua. Mas nunca quero que você deixe essa propriedade”. Ela aproveitou a deixa, e colocou: “Fazenda Não me deixes”. Mas tenho outra história boa.

Na década de 70, Luiz Gonzaga veio fazer uma apresentação em Quixadá e, depois do show, quis visitar Rachel. Chegamos lá já era muito tarde. Ele desceu, pegou a sanfona e tocou o prefixo do boiadeiro da porteira. Ela saiu de dentro da casa e disse: “eu tinha certeza que você viria, Gonzaga”, e deram um forte abraço. Ficamos lá até tarde da madrugada, e a conversa dos dois a maior parte do tempo foi a respeito dos problemas da seca pelo Nordeste.

Fique sabendo que o senhor tem uma filha com muito talento para as letras. É verdade?

É minha filha mais nova, a Bruna Borges Costa. Essa menina começou a escrever aos sete anos e agora, aos 13, publicou seu primeiro romance, “Entre o Bem e o Mal”. Ela está empolgada, recebeu agora uma comenda, a Medalha Rachel de Queiroz, por esse livro, que será lançado próximo dia 21, em Fortaleza, na III Festa da Família Lemos. E já está escrevendo outro romance. No colégio dela, várias outras mocinhas também estão começando a escrever. Mas ela se intimida quando fazem comparações com Rachel de Queiroz. Disse que acha responsabilidade demais. E é mesmo.

Fique por dentro
Sertão das escritoras

Aos 13 anos, a menina Bruna Borges Costa apresenta seu primeiro livro, sob os olhares atentos dos pais, João Eudes e Ângela Borges. “Entre o bem e o mal” conta uma história que, segundo a própria, “fala de questionamentos, divagações existenciais”. Ano passado, Bruninha, como é chamada entre os seus, recebeu da Câmara Municipal de Quixadá, a “Medalha Rachel de Queiroz”, comenda destinada aos que se destacam na literatura quixadaense.

Além disso, seu conto, “Nas Asas da Imaginação”, foi escolhido, em seleção realizada entre 3,6 mil participantes, pelo Diário do Nordeste, para compor o livro que o reunia com outros 19 contos. A adolescente apresenta outros escritos já impressos: “Lendas da Literatura Infantil”, “Meu querido pai” e “Estrela Guia”.

Fonte: Diário do Nordeste

 


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